A FALSA DIVINDADE DO KANTISMO


Para a maior parte das pessoas que vêm a crer na existência de Deus é fácil aceitar que com essa crença também vem a autoridade intrínseca do Criador. Não obstante, um ateu filosoficamente autoconsciente terá mais dificuldade para aceitar a autoridade natural de Deus. Cristãos e não-Cristãos têm diferentes cosmovisões. Eles têm diferentes sistemas inteiros, com diferentes pressuposições, diferentes metafísicas e diferentes epistemologias. 

Para o não-Cristão, a realidade é controlada pelo (ou é uma expressão do) Acaso. A essa suposição do incrédulo Van Til chama de "irracionalismo". Ao mesmo tempo, o não-Cristão pressupõe que a realidade é totalmente determinada por leis às quais seu pensamento é ultimamente idêntico. A essa segunda suposição do incrédulo Van Til chama de "racionalismo". O descrente, portanto, tem um sistema que é ao mesmo tempo racionalista e irracionalista. Sobre estas pressuposições, o não-Cristão que busca ser consistente jamais aceitará a autoridade absoluta de Deus.

A autoridade absoluta de Deus pressupõe que Deus é totalmente conhecido por Si mesmo e que o universo criado é também totalmente conhecido por Ele porque é controlado por Ele. Van Til chama essa pressuposição de "princípio Cristão de continuidade". O não-Cristão, porém, considerará tal posição determinista ou racionalista. Ele dirá que a ideia de liberdade e significância do conhecimento humano, nessa visão, desapareceu. 

Ao mesmo tempo, a autoridade absoluta de Deus pressupõe que os pensamentos de Deus não estão abertos à inspeção humana. Deus precisa revelar-se ao homem. Van Til chama isso de "princípio Cristão de descontinuidade". O não-Cristão, contudo, considerará tal posição indeterminista e irracionalista. Ele dirá que tal ideia eliminaria toda a continuidade racional entre Deus e o homem. Tal posição coloca o homem em completa sujeição aos pronunciamentos arbitrários que Deus faz sobre ele.

Van Til, citando Dooyeweerd e Vollenhoven, ressaltará o fato de que a combinação entre racionalismo e irracionalismo na visão do descrente o conduzirá a um conflito interno insolúvel. O homem moderno quer, ao mesmo tempo, manter a ideia de liberdade da personalidade humana e a ideia de ciência pela qual ele possa conhecer e controlar toda a realidade, incluindo a própria natureza humana. Se a ciência do homem moderno for bem-sucedida, o homem terá perdido sua liberdade. Kant, então, procurou conciliar o ideal de ciência com o ideal de liberdade humana: o primeiro lidará com o phenomena enquanto o segundo lidará com o noumena. Mas isso não soluciona o problema.

Para o não-Cristão, a ideia de autoridade absoluta de Deus é impossível se a experiência humana deve ser interpretada pelo princípio do homem apóstata, i.e., a neutralidade e a autonomia. Sobre as pressuposições da incredulidade é impossível que exista um Deus que fale com autoridade. "Kant deu espaço à 'fé', mas não à fé bíblica", diz Van Til. [Christian Theory of Knowledge, 51]. Kant abriu espaço para a existência de uma divindade [supostamente] como a Escritura declara porque seu compromisso mais profundo é com a possibilidade abstrata. Em um universo onde "qualquer coisa" é possível, parece que a existência de uma divindade é possível. Mas, como diz o holando-americano, essa abertura tem uma limitação básica. Quando um kantiano diz que qualquer coisa é possível, isto é para ele um "conceito limitante". "Ele sabe que vacas não podem pular sobre a lua exceto em contos de fadas. Então a ideia de um Deus cuja experiência não está sujeita às mesmas condições que controlam o homem não é pragmaticamente possível. Tal ideia, ele diz, é ininteligível. (...) Portanto, é puro irracionalismo dizer que tal Deus exista." [52]

Por outro lado, o kantiano entenderá que a noção de autoridade bíblica é racionalista porque implica em uma noção de racionalidade que controla tudo o que vem a ser. Isso retiraria do homem toda a independência, sua própria razão seria mais um fato pré-determinado por Deus. Então não existiria, para ele, nenhuma autoridade real, porque para ele autoridade pressupõe a liberdade de um indivíduo para com outro.

Em outras palavras, a "divindade" cuja existência o kantiano está disposto a conhecer através de evidências não pode existir em um nível metafísico superior ao do homem — isto é, em termos van tilianos, uma rejeição da distinção Criador-criatura. A divindade aceitável para o kantismo existe metafisicamente abaixo do puro Acaso e da possibilidade abstrata. Essa divindade é conhecida pelo homem através daquilo que a razão humana julgar como possível ou impossível. Ela não pode ter a autoridade que a Bíblia diz que Deus tem.

Van Til nos lembra que os homens através da história buscaram algum tipo de autoridade. Até mesmo os filósofos gregos. Contudo, eles não buscam o mesmo tipo de autoridade bíblica. Os homens têm alguma consciência de sua necessidade, mas fazem o diagnóstico errado de sua própria condição. O tipo de autoridade que um kantiano aceitará terá de ser consistente com seu princípio de auto-referência última e com seu "direito" de ser o árbitro final de seu destino. A autoridade religiosa que eles aceitarão é aquela autoridade do expert, do especialista. Assim como há autoridades na medicina e na física, Jesus seria uma mera autoridade em questões religiosas, um especialista. Apenas neste sentido Jesus poderá ser visto como guia ou autoridade. Jesus, pensa o kantiano, pode ter tido uma intuição mais profunda sobre a natureza de Deus e da realidade. Porque é impossível para o ser humano atingir conhecimento exaustivo em virtude das leis de seu pensamento não irem além da experiência, é lícito apelar para alguém que tem insight sobre o númeno. Talvez exista mais sobre a vida do que o olho vê. Talvez a realidade seja mais profunda que a lógica. Ninguém sabe.

Em tal visão de autoridade, o ponto final de referência ainda é o homem autônomo. Os especialistas podem divergir; é o homem quem decidirá por si mesmo. Pedir para alguém aceitar qualquer coisa com base na pura autoridade, como a autoridade que a Bíblia reivindica para si mesma, é negar a natureza humana livre. É pedir para o homem ser irracional. Com Platão, o kantiano buscará por algum especialista, e ouvirá a mitologia. Mas o critério final da verdade e da falsidade está no próprio homem.


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