Epistemologia Revelacional: Um Breve Esboço (por Daniel Akande)



Eu começarei citando uma passagem de "A Survey of Christian Epistemology", de Van Til:


"De acordo com a Escritura, Deus criou o "universo". Deus criou o tempo e o espaço. Deus criou todos os "fatos" da ciência. Deus criou a mente humana. Nesta mente humana Deus colocou as leis do pensamento de acordo com as quais ela deve operar. Nesses fatos da ciência Deus colocou as leis do ser de acordo com as quais eles devem funcionar. Em outras palavras, a impressão do plano de Deus está sobre toda a sua criação.

Nós podemos caracterizar toda esta situação dizendo que a criação de Deus é uma revelação de Deus. Deus revelou-se a si mesmo na natureza e Deus também revelou-se a si mesmo na mente do homem. Então é impossível para a mente humana funcionar exceto em uma atmosfera de revelação. E todo pensamento do homem quando funcionasse normalmente nesta atmosfera de revelação expressaria esta verdade como posta na criação por Deus. Nós devemos portanto chamar uma epistemologia cristã de epistemologia revelacional".


Na passagem acima, Van Til coloca em termos simples sobre o que seu esquema epistemológico diz respeito. Há certas coisas que são cruciais para um entendimento desta epistemologia.


O Deus Que Revela

Nós não podemos falar de revelação sem falar também d'Aquele que revela. Eu quero clarificar que por "revelação" eu estou me referindo especialmente à revelação cristã ou bíblica. Eu estou ciente de que existem outros sistemas filosóficos que falam de revelação e que podem querer clamar o título de "epistemologia revelacional". Contudo, no intuito de clareza, os termos "revelação" e "Deus" devem ser entendidos no sentido teísta-cristão.

Com esta clarificação fora do caminho, devemos entender que o Deus Trino da Escritura é a fundação da epistemologia revelacional. Esta visão pode ser descrita como um tipo de "monergismo epistêmico". Isto porque na Escritura nós aprendemos que esse Deus é perfeito em todos os sentidos. Ele é perfeitamente sábio, perfeitamente amoroso, perfeitamente santo, e sem quaisquer limitações externas. Nós aprendemos que Deus é auto-suficiente; Ele é completo em Si mesmo e não requer nada além de Si mesmo para completar, condicionar, definir ou fazê-lO quem Ele é. Ele também é transcendente; Ele não é em qualquer sentido relativo ao universo - sua essência não é influenciada por isto (universo), Ele o transcende completamente.

Aqui nós devemos trazer a distinção Criador/criatura. Há uma vasta distância metafísica entre Deus e o universo criado. Deus existe em um plano metafísico completamente diferente. Há dois "níveis" de ser - Criador e criado - e amos os planos não entram em contato em qualquer ponto. Vern Poythress explica este ponto bem quando escreve:


"Há dois níveis de ser, dois níveis de existência: a auto-suficiente e original existência de Deus Criador, e a dependente e derivativa existência das criaturas. Em contraste, a filosofia não-cristã finge que existe apenas um nível de ser universal... A distância ontológica entre Criador e criatura tem implicações para a epistemologia. O conhecimento de Deus deve ser diferenciado do conhecimento que as criaturas têm."


A implicação desta visão de Deus para a epistemologia é que o conhecimento de Deus só pode ser obtido através de divina revelação. Este é o monergismo ao qual me referi antes. Aqui nós vemos um paralelo entre salvação e epistemologia. Nesta visão, Deus apenas cruza a distância metafísica entre Ele e as criaturas. Ele o faz através de sua voluntária auto-revelação. Sem esta condescendência, o conhecimento de Deus (ou qualquer outra coisa) é impossível para o homem. Deixado em si mesmo, o homem está epistemologicamente morto. Sendo finito, o homem não pode esperar cruzar a distância metafísica entre ele e Deus. A salvação epistemológica do homem, então, é conseguida por Deus apenas.


Criação Como Revelação

Como Deus revela-se a si mesmo? Van Til já proveu a resposta na citação anterior quando ele afirmou que, de acordo com a Escritura, que "a criação de Deus é uma revelação de Deus." O salmista nos diz que os céus declaram a glória de Deus (Salmo 19:1). Paulo concorda quando ele afirma que Deus fez-se a si mesmo conhecido através da ordem criada (Romanos 1:20). O que podemos concluir disso é que todo fato é um fato Deus-revelador. É o ato criativo de Deus que torna os fatos o que eles são e Sua assinatura está impressa em cada fato particular do universo criado - incluindo o próprio homem.

O ato de criação de Deus é um ato de revelação. Ao criar o homem à Sua Imagem, Deus revela-se a si mesmo ao homem. O conhecimento de Deus é construído na psique humana; em um sentido, faz parte das engrenagens de fábrica. A vida cognitiva é prohetada para apresentá-lo com entendimento inerrante de seu Criador. Auto-consciência é consciência de Deus.

Destarte, o mundo em que o homem habita, e sua própria consciência, são revelatórios. Eles caem sob o que é comumente entendido pelos teólogos como revelação "geral" ou "natural".


Conhecimento de Deus

Uma palavra sobre o conhecimento humano de Deus deve ser dita. Através do milênio, uma jornada importante da disciplina filosófica conhecida como epistemologia é encontrar um ponto de partida adequado pelo qual o homem pode começar seu conhecimento. Muitas propostas foram tentadas: experiências incorrigíveis, um conjunto coerente de crenças, aparências, e alguns até mesmo negaram que um ponto de partida pode ser encontrado.

Nisto, a epistemologia revelacional é única. Ao contrário de todas as outras formas de epistemologia, sua resposta para a questão de qual é o ponto de partida apropriado do conhecimento não é uma crença, proposição ou experiência sensória. Antes, é o conhecimento de uma Pessoa.

Nós podemos distinguir entre vários tipos de conhecimento. Há o "conhecimento da coisa", também chamado "conhecimento proposicional". Este é o conhecimento de que certo estado de coisas fora da mente (expresso por uma proposição) é o caso. Por exemplo, alguém pode dizer que Alice sabe que está chovendo lá fora. Este é o tipo mais comum de conhecimento discutido entre os epistemólogos contemporâneos. Há também o "conhecimento dos meios", ou "conhecimento processual". Este é o conhecimento de como se fazer algo. Por exemplo, alguém pode dizer que Alice sabe como andar de bicicleta. Contudo, existe ainda o "conhecimento do conhecido" ou "conhecimento pessoal" (trad. "acquaintance knowledge"). Este é o conhecimento que alguém tem em virtude da familiaridade com uma pessoa ou objeto; o conhecimento que alguém tem de um parente ou amigo, por exemplo. Estes conhecimentos não se reduzem uns aos outros. Meu conhecimento de minha mãe não pode ser adequadamente capturado por um conjunto de proposições, ainda que certos aspectos deste conhecimento possam ser expressos proposicionalmente (meu conhecimento de que minha mãe é uma boa cozinheira, por exemplo).

Este conhecimento pessoal é o tipo fundamental de conhecimento que o ser humano possui de Deus, mesmo que vários aspectos deste conhecimento possam ser expressos proposicionalmente. Em virtude de ter sido criado à Sua Imagem, o homem possui um tipo de familiaridade inata com Deus - uma familiaridade como nenhuma outra. Esta familiaridade é o ponto de partida do conhecimento.


Escritura

Disto se segue para a questão da revelação especial e Escritura. A Escritura serve como outra forma de Deus voluntariamente revelar-se a si mesmo. Na Escritura nós temos comunicação verbal de Deus para o homem. É o testemunho de Deus sobre Si, sobre o homem, e sobre o mundo em que o homem habita. Sendo inspirada por Deus, ela possui todas as perfeições do próprio Deus. Ela é portanto infalível e autoritativa.

Alguém pode perguntar como sabemos que a Escritura vem de Deus. A resposta é simples: apenas a familiaridade com um amigo habilita alguém a reconhecer imediatamente sua voz, escritura ou assinatura, a familiaridade que todos os homens têm com Deus habilita-os a reconhecer a autoria divina da Escritura, provido seja que eles não suprimam este conhecimento. E ao reconhecerem essa autoria divina, todos os homens reconhecem a autoridade, credibilidade e infalibilidade da Escritura.

A Escritura representa um sistema de verdade infalível e autoritativo. Como tal, ela ocupa o ponto mais alto na hierarquia epistemológica. Isto significa que ela não está sujeita à verificação independente anterior à aceitação de suas afirmações. Como Deus, a Escritura é auto-suficiente. Suas afirmações são aceitas ultimamente na base de sua autoridade intrínseca.


A Doutrina da Analogia

Nenhum tratamento da epistemologia revelacional seria completo sem mencionarmos o "raciocínio analógico". Previamente notamos que os atos criativos de Deus fazem os fatos serem o que são. Todos os fatos, então, são fatos criados. Isto implica que alguém não pode conhecer um único fato sem referência a Deus. Os objetos do conhecimento não existem independentemente de Deus e do homem em algum reino abstrato de fatualidade. Antes, o pensamento de Deus é "construtivo" dos fatos. Conseguentemente, em ordem de conhecer os fatos, o homem deve submeter-se a si mesmo à revelação de Deus e espelhar o sistema de conhecimento de Deus, pensando os pensamentos d'Ele após Ele. Isto é raciocínio analógico e é uma consequência necessária da epistemologia revelacional.

Rejeitar o raciocínio analógico é afirmar a bruta fatualidade. Esta é a postura do sinergista epistêmico (ou pensador autônomo). Não obstante, fatualidade bruta conduz à impossibilidade do conhecimento. Dessarte, a reinvidicação da epistemologia revelacional sobre todas as outras formas de epistemologia é que a epistemologia revelacional é epistemicamente necessária - sem ela, o conhecimento é impossível.


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