O Método de Van Til Conduz ao Relativismo Religioso?



É velha a acusação de que o método de Cornelius Van Til conduz a um relativismo religioso porque [supostamente] toda e qualquer religião poderia reivindicar uma abordagem semelhantemente pressuposicionalista. Se este fosse o caso, assume-se, a Apologética Pactual (ou "Pressuposicionalista") seria inefetiva.


Não obstante, é nossa defesa que nenhuma outra religião pode reivindicar o método van tiliano porque lhes faltam os pressupostos necessários que tornam a Apologética Pactual necessária. E é nossa defesa que mesmo religiões que reivindicam para si alguma forma de revelação, como o judaísmo e o islão, não podem resolver todos os problemas da experiência humana — isto é, não preenchem os requisitos necessários para tornar a experiência humana inteligível.


É nossa argumentação que a Epistemologia Revelacional, que embasa a Apologética Pactual, só é possível na cosmovisão Cristã. E por "cosmovisão Cristã" estamos nos referindo especificamente à Tradição Reformada. A Epistemologia Revelacional nasce de um sistema de crenças específico, identificado com esta tradição. 


[Nota: Van Til ressaltava que as doutrinas desse sistema são interdependentes, não podendo ser tomadas isoladamente, de forma que a prática da apologética por parte dos Cristãos não é para a demonstração apenas da existência de Deus, mas para a defesa de todo o conjunto de crenças pertencentes à cosmovisão Cristã. A apologética não é a prática da defesa de argumentos para a existência de um deus qualquer (teísmo genérico), mas para a defesa do Deus que é Pai do Senhor Jesus Cristo.]


Da Doutrina de Deus

Não pode haver Epistemologia Revelacional, que é a base para a Apologética Pactual,

(a) sem a distinção Criador-criatura que Van Til defendeu;

(b) sem um Deus que seja auto-suficiente e auto-contido — que não precise de nada além de si mesmo para sua própria definição;

(c) sem um Deus que conheça a Si mesmo eternamente;

(e) sem um Deus que é uma Trindade — considerada para nossos propósitos tanto em seu aspecto Ontológico quanto Econômico;

(f) sem um Deus que tenha criado toda a realidade a partir do nada — e que interprete exaustiva e infalivelmente todos os fatos por Ele criados;

(g) sem um Deus que seja transcendente;

(h) sem um Deus que revele-se infalivelmente ao homem — ou seja, um Deus que condescenda ao homem, manifestando alguma forma de imanência, em ordem de ser conhecido por suas criaturas racionais;

(i) sem um Deus que seja santo e estabeleça uma relação Pactual com suas criaturas racionais — pois, segundo Van Til, o pensar corretamente, isto é, submeter-se à autoridade absoluta de Deus até mesmo nos pensamentos, faz parte do Pacto estabelecido entre Deus e os homens.


Da Doutrina do Homem

A Epistemologia Revelacional não seria possível

(a) sem um homem que seja criado à Imagem e Semelhança desse Deus Absoluto — ou seja, que tenha uma natureza moral e racional que não possa ser definida à parte desse mesmo Deus;

(b) sem um homem que seja metafisicamente dependente de Deus;

(c) sem um homem que seja intérprete derivativo de Deus, dependendo do conhecimento que Deus tem da realidade para alcançar ele mesmo conhecimento analógico e limitado dessa realidade;

(d) sem um homem que esteja em relacionamento Pactual com seu Criador e seja responsável perante Ele.



As Demais Tradições Cristãs

Sem estes pontos, não se pode ter Epistemologia Revelacional e, portanto, não se pode usar consistentemente o método pressuposicionalista van tiliano. Diante disto, é digno de nota que a Apologética Pactual é incompatível mesmo com outras tradições da Cristandade, como o Catolicismo Romano, o Luteranismo e o Arminianismo. Van Til acusava essas tradições de falharem em um ou mais pontos supracitados. Contra todas Van Til levantou a acusação de darem, em maior ou menor medida, alguma auto-suficiência e autonomia ao homem — o que necessariamente diminui a auto-suficiência de Deus. No Arminianismo, por exemplo, Deus não é o controlador de todos os fatos, o que significa que Deus não pode reivindicar uma interpretação exclusiva e autoritativa dos fatos. No Catolicismo Romano, que tem uma epistemologia mista, o homem é capaz de conhecer os fatos naturais sem pressupor Deus e a revelação. Deus e o homem compartilham a tarefa de interpretar a realidade juntos, sendo a autoridade de Deus aquela autoridade de um especialista, apenas. Muitos Cristãos pertencentes a tais tradições podem tentar argumentar segundo o método pressuposicionalista van tiliano, mas nenhum deles estará sendo consistente quando assim o fizer.


Outras Religiões

Muito mais radical, então, é a diferença entre a Tradição Reformada e as demais religiões. Não é teoreticamente possível que outras religiões desenvolvam uma epistemologia similar à Epistemologia Revelacional.


Finjamos, porém, que outras religiões podem emular o método van tiliano. Mesmo assim, outras religiões continuam sem cosmovisões suficientemente dotadas dos requisitos necessários para dar sentido à experiência humana. É a acusação van tiliana que somente a cosmovisão Cristã genuína — i.e., aquela que corretamente submete-se ao principium speciale do Cristianismo — pode dar sentido à experiência humana. A Trindade possui o equilíbrio necessário entre unidade e diversidade para resolver o problema dos universais. Por causa da absolutez e do ato criativo do Deus Cristão, existe uma interpretação exaustiva e autoritativa de Sua Parte sobre toda a realidade. Isto equivale a dizer que a realidade criada, para o Cristão, é ultimamente racional — porque Deus é racional e sua obra reflete essa racionalidade —, tornando o conhecimento humano dos fatos possível e rejeitando a ideia de "fatos brutos". Por causa da revelação infalível do Deus Triúno do Cristianismo, o ser humano, em sua limitação, pode ter uma cópia finita do sistema presente na mente de Deus, que é a fonte de inteligibilidade para toda a experiência humana.


Por causa de nossa limitação, dependemos do conhecimento de Deus para termos conhecimento dos fatos. Por causa da autoridade absoluta de Deus, a interpretação que Ele dá à realidade é autoritativa para a razão humana. O conhecimento humano, por conseguinte, é verdadeiro na medida em que se aproxima do conhecimento eterno e exaustivo que existe na mente de Deus. O Cristão "pensa os pensamentos de Deus depois d'Ele". Como consequência, a Apologética Pactual torna-se possível e necessária. O Cristão estará desonrando a Deus e pecando quando tentar argumentar em defesa do Cristianismo sem pressupor o Criador e sua Revelação. Ele estará utilizando a razão de uma forma que ela não foi criada para ser usada. O homem, em todo o seu processo de raciocínio, precisa pressupor o Deus Triúno e sua Revelação autoritativa porque de outra forma ele não pode ter sequer conhecimento válido.



Em comparação, o deísmo, por exemplo, estabelece um deus totalmente transcendente que não condescende e não se importa com sua criação. Ele falha, portanto, no item (h) da doutrina de Deus. Sem uma auto-revelação como a do Deus Cristão, o deísta não possui justificativa racional para quaisquer declarações a respeito da natureza de seu deus. Consistentemente com sua cosmovisão, o deísta tentará provar a existência desse deus por meio de argumentos lógicos a partir da experiência, como Aristóteles fez. O Deus deísta não pode produzir uma Epistemologia Revelacional. Ele não é Absoluto, pois ele é penetrado completamente pela luz da razão e da lógica humanas. Ele ocupa o mesmo nível metafísico do homem, pressupondo o Acaso como metafisicamente último e estando rodeado por possibilidade abstrata. Ele não pode presidir autoritativamente a realidade.


Religiões mais parecidas com o Cristianismo, como o judaísmo e o islão, ainda que advoguem a existência de uma revelação, não podem, no quadro completo, dar sentido à experiência humana. Sem a Trindade, eles não podem resolver o problema dos universais e dos particulares. Se esse deus existe como pura unidade, segue-se que tal unidade é metafisicamente última. Qualquer diversidade ou pluralidade que exista na realidade é contingente e derivativa de uma unidade mais fundamental. Isto destrói a experiência humana. Ainda, por não ser uma Trindade, esse deus não possui um relacionamento interpessoal eterno de amor e benignidiade como acontece com a Trindade Econômica. Assim sendo, quando se diz que esse deus é Amor, deve-se entender que ele é apenas potencialmente amor, já que não há objeto amado antes que a criação comece a existir. Esse deus precisa, por conseguinte, da criação para atualizar-se. Ele precisa da criação para experienciar relacionamentos interpessoais. Ele não é, portanto, auto-suficiente e completo em si mesmo. Embora esse deus se revele, ele não resolve os problemas metafísicos que são pré-condição para a inteligibilidade da experiência humana.


O politeísmo também não pode resolver os problemas da experiência humana e não pode produzir uma Epistemologia Revelacional. Nenhum dos deuses de um sistema politeísta pode ser absoluto, já que pluralidade de absolutos é impossível. Ao contrário do monoteísmo unitarista, o politeísmo está comprometido com a pluralidade e a diversidade, fazendo com que nenhuma das divindades possua uma interpretação autoritativa da realidade que sirva de base para o conhecimento humano. Ao contrário da Trindade, não há equilíbrio entre unidade e diversidade. O problema da factualidade bruta também surge em uma cosmovisão politeísta porque todos os deuses estão, em última análise, embaixo de uma metafísica onde o Acaso é último e estariam rodeados por possibilidade abstrata.


É impossível para todos estes sistemas utilizarem um método pressuposicionalista por causa de suas cosmovisões e é impossível que eles deem, no quadro mais amplo, as respostas necessárias para a inteligibilidade da experiência humana.


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