Seria Cornelius Van Til um solipsista?




Circula nas redes sociais a acusação de que o doutor Cornelius Van Til seria um solipsista. Solipsismo é a ideia de que existem apenas o eu e a mente pensante, e que o mundo fora da mente é inexistente. Tudo o que o ser humano é capaz de conhecer, para o solipsista, são as impressões da própria mente - nunca os objetos do mundo externo.


Tal acusação infundada nasce de incapacidade de compreender os escritos do filósofo de Westminster (se é que os acusadores se deram o trabalho de lê-lo). Van Til não apenas não é solipsista como ele acusa o pensamento não-cristão de cair inevitavelmente no solipsismo quando os pressupostos do não-cristão são levados às consequências lógicas, mesmo no caso daqueles sistemas não-cristãos que procuram apelar para uma possível interpretação objetiva provida pelos sentidos.


Em primeiro lugar, devemos dizer que Van Til defende uma interpretação objetiva dos fatos do mundo porque estes fatos são criados por Deus, controlados e interpretados perfeita e objetivamente por Deus. Não existem interpretações subjetivas porque Deus provê a interpretação objetiva dos fatos. Quaisquer interpretações contrárias à interpretação de Deus são necessariamente categorizadas como "falso conhecimento", i.e., erro. 


Em segundo lugar, precisamos destacar o fato de que estamos falando sobre a relação entre o sujeito conhecedor (ser humano) e os objetos do conhecimento (o mundo). 


Na visão cristã, tanto a mente do homem quanto o mundo são criados e controlados por Deus. Deus, como dito acima, controla todos os fatos criados. Ele também criou a mente do homem com certas ferramentas (razão e sentidos) com o propósito específico de fazer o ser humano adquirir conhecimento do mundo criado. Neste caso, nós podemos dizer que tanto o sujeito do conhecimento quanto os objetos do conhecimentos foram feitos um para o outro. Como criaturas de Deus, nós estamos, em um sentido, "em casa" dentro do mundo. Porque Deus pré-ordenou o sujeito e o objeto do conhecimento para um contato frutífero, na visão cristã, não existe abismo entre ambos. Ou seja: a visão cristã começa com uma conexão fundamental entre o sujeito e o objeto do conhecimento.


A visão anti-cristã, contudo, começa com uma desconexão fundamental entre sujeito e objeto do conhecimento. Para o não-cristão, os fatos não são criados e não estão sob controle de Deus. O panorama do descrente é aquele de caos, pura contingência e possibilidade abstrata. Ainda, a mente do homem não foi pré-ordenada a qualquer propósito específico. Assim sendo, ao tentar ganhar conhecimento do mundo, o ser humano está tentando cruzar um abismo entre ele mesmo e os objetos do mundo externo à sua mente, não existindo nada que facilite a conexão entre ambos. 


Na visão cristã, Deus facilita a conexão entre sujeito e objeto do conhecimento por seu ato Criador e sua Revelação. Na visão anti-cristã, o homem deve cruzar o abismo por si mesmo. 


Porque o não-cristão começa a conhecer por si mesmo (tanto na ordem lógica quanto na ordem temporal; ver "predicamento egocêntrico"), ele nunca consegue sair de si mesmo. Toda tentativa de conhecimento de fatos externos terminará reduzida às percepções subjetivas ou à imposição de categorias racionais a fatos exteriores que são caóticos e incognoscíveis. Se o universo é irracional, não há racionalidade a ser obtida pela mente do ser humano. Mesmo que o mundo pareça ser de determinado jeito, o não-cristão não chegará à conclusão de que ele realmente é daquela forma - ou seja, o ser humano só conhece as aparências do mundo externo, nunca chegando ao conhecimento objetivo. Neste caso, o desejo da mente humana por conhecimento do mundo externo só pode cair no absurdo. O ceticismo quanto ao mundo externo à mente se torna inescapável. É isto que Van Til quer dizer quando afirma que se as pressuposições anti-cristãs fossem verdadeiras, seria "impossível [para o descrente] conhecer qualquer coisa.


Em outras palavras, o conhecimento humano pressupõe como condição sine qua non um certo nível de correspondência entre sujeito e objeto do conhecimento. Dadas as pressuposições do não-cristão (uma cosmovisão ateleológica e irracional), o descrente não possui, em seu sistema, uma garantia ou base que justifique a experiência dos sentidos humanos com os objetos externos. 


Isto não significa dizer que o não-cristão, na prática, não tenha experiência de conhecimento verdadeiro com os sentidos. A acusação de Van Til é que, pressuposicionalmente, o não-cristão não pode justificar sua razão/experiência. Em outras palavras, o descrente vive uma tensão existencial entre suas pressuposições falsas e sua experiência real, porque o descrente é uma criatura de Deus vivendo em um mundo criado por Deus ao mesmo tempo em que nega a existência e o caráter desse mesmo Deus.


Muitos não-cristãos - talvez a maioria deles - tentarão validar as percepções dos sentidos como forma de escapar do ceticismo que suas pressuposições impõem, mas sua tentativa será vã. A solução mais otimista ao problema veio do idealismo, que pressupõe a existência de um mundo fora da mente como possibilidade - nada além disto. O problema do abismo continua. Se o descrente estivesse certo e nossos sentidos não fossem desenhados por Deus, não haveria razão para crer-se que dos sentidos haja uma correspondência genuína com os fatos externos que garantisse obtenção de conhecimento, mesmo pressupondo-se a possibilidade de existência do mundo fora da mente. Nossos sentidos poderiam ser suficientes para a sobrevivência, mas nada implica que eles seriam suficientes para o conhecimento do mundo. 


O descrente, porém, tem algum conhecimento real do mundo externo porque ele também é Imago Dei vivendo em um mundo criado e controlado por Deus. O que ele não pode é adequadamente sustentar sua experiência de forma coerente, porque ele está em rebeldia contra o Criador. Cornelius Van Til chega a destacar que descrentes são geralmente melhhores cientistas do que os cristãos. Ora, isto não seria possível se Van Til não estivesse ciente de que o não-cristão tem algum conhecimento válido pelos sentidos. São os pressupostos do descrente que tornam suas próprias vidas impossíveis! Deus, porém, pela Graça Comum, não permite que o descrente seja consistente com seus pressupostos. Do contrário, o não-cristão viveria, como diz Rushdoony, delírios existencialistas perpétuos, crendo que o mundo externo não passa de uma criação de sua própria vontade. O não-cristão continua olhando uma maçã e conhecendo-a (porque Deus o criou para conhecê-la). Esta experiência ingênua é tida como garantida apenas por não-cristãos filosoficamente inconscientes. Um ateu filosoficamente consciente saberá que existe um divórcio entre o que ele conhece e o que ele pensa que pode conhecer de fato. O pós-modernismo é a tentativa do não-cristão de ser consistente com seus próprios pressupostos.


Van Til escapa deste problema porque nosso sistema de pensamento começa com Deuspela Revelação o homem tem correspondência com Deus (conhecimento analógico) e esta correspondência garante a correspondência com os objetos dos sentidos. O ponto de partida do cristão não é a sua própria mente, mas a Revelação de Deus. Na visão cristã, mesmo que nós comecemos pelos sentidos na ordem temporal, é na Revelação de Deus que encontramos a prioridade lógica para o conhecimento. Nossa experiência e nossos estados mentais entram em contato com a realidade precisamente por causa da Revelação de Deus. Nós podemos ver esta distinção pelo exemplo do observador de um prédio. O observador do prédio primeiro observa a estrutura diante de seus olhos, que é o ponto de partida temporal. Mas para que tal observação seja possível, o prédio precisa ser erguido sobre uma forte fundação, que é o ponto de partida lógico. O cristão pode confiar em seus sentidos e em suas faculdades racionais porque ele acredita que ambas são sustentadas pelo ato criacional e revelador de Deus. Ele acredita que suas faculdades foram desenhadas por Deus com o intuito de trazer-lhe conhecimento do mundo ao seu redor.


O conhecimento humano é justificado na cosmovisão cristã - e somente na cosmovisão cristã. Ao descrente, resta a loucura de sua própria posição.


"Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos". (Romanos 1:22)



[Nota: Para Van Til, o conhecimento do descrente é sempre imperfeito também porque sua filosofia dos fatos é inverídica e todos os fatos são interpretados ignorando a premissa da Criação e do controle de Deus. Este aspecto da epistemologia van tiliana é mais complexo e terá explicação em outra oportunidade.]


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